Tenho evidenciado prioritariamente uma crença no
treino de futebol pela mecanização de gestos técnicos isolados, pela
dependência de treinos perfeitamente organizados, com exercícios espalhados
pelo espaço do terreno de jogo. A degradação dos aspectos criativos ocorre
quando os exercícios utilizados tornam-se radicalmente irreais ao contexto do
futebol e sem referência ao jogo pretendido.
A mudança de "face" do futebol esta bloqueando o aparecimento de jogadores criativos, capazes de solucionar os problemas no jogo através de respostas originais, eficazes e imprevisíveis, porque as acções rotineiras treinadas são pouco inovadoras e facilmente bloqueadas pelos adversários.
O futebol implica que o treino seja criativo, de forma a modelar o contexto a partir de acções controláveis, imprevisíveis e alteráveis, já que a resolução das situações competitivas não será sempre única, e os atletas precisam de criatividade & inteligência para ultrapassa-las.
A falta de qualidade criativa e de inteligência nos jogadores tem a ver com os estímulos onde os jovens aprendem a jogar futebol. Quando tinha a idade do Henrique, a escola mais popular para descobrir os segredos do futebol era a rua, onde as carências eram supridas com imaginação, ilusão e "chico espertismo"; actualmente essa tendência é cada vez menor ou nula e as escolas de futebol nos clubes não conhecem a importância da criação de contextos criativos e passaram a formar atletas "mecânicos" ao invés de jogadores de futebol.
Nesse entendimento, a criação do contextos criativos entra em campo com o objectivo de formar jogadores e equipas criativas e com capacidade de resolver problemas, buscar novos desafios, conhecimentos e a diversidade que o futebol necessita. E o contexto só será criativo com o jogo, que incita os jogadores a pensar, aprender, descobrir, antecipar, reconhecer padrões, estimular as emoções e criar caminhos para a transformação. Como é necessário, os jogos devem ser estruturados visando a resolução de determinados problemas pertencentes à forma de jogar que a equipa aspira. Utilizando o jogo constantemente como veículo de treino-competição, a capacidade de estabelecer relações pré-estabelecidas e inusitadas para resolver problemas, além de identificar diversas alternativas para tais resoluções, se bem estruturados, constantemente oferecerão margem ao pensamento criativo.
Neste contexto, o Henrique Alves, tem vindo a revelar uma certa apatia e desconforto pela repetitividade dos treinos que semanalmente são organizados pelo clube, que seguem uma linha orientadora visando atingir no final da época os objectivos propostos. Sem querer ferir susceptibilidades, não me revejo no actual modelo de treinos que são transversais a quase todas as equipas de futebol na actualidade.
No percurso que realizamos durante a semana até as instalações do Sintrense, explico ao Henrique como eram organizados os treinos no Atlético de Madrid, onde a vertente da preparação física era predominante nos primeiros 30 minutos de cada treino. A equipa era entregue ao preparador físico, este elaborava os exercícios que a equipa técnica tinha acordado para atingir os objectivos pretendidos, depois éramos "libertados" para os treinadores organizarem o treino-jogo extremamente competitivo e com grande intensidade entre todos os jogadores do plantel, onde éramos interrompidos quando necessário para corrigir erros ou realizar alguns movimentos específicos que o Mister tinham em mente.
Durante o jogo-treino podíamos "criar" jogadas individuais ou colectivas, tínhamos a liberdade de sair a jogar desde a nossa defesa, com toque de bola com finta ou com lançamento longo. Nos ensinavam que não havia problema na perca da bola, mas sim a falta de atitude na recuperação da mesma, a bola era "nossa" e não do adversário, a partir de aí estabelecia-se um equilíbrio não escrito entre os objectivos da equipa técnica e a liberdade criativa do grupo de trabalho. Na fase final do treino eram realizados trabalhos específicos por grupos, consoantes as posições de jogo de cada atleta.
Ser criativo é uma condição permanente que dura toda a vida e criar no futebol é fabricar intencionalmente uma forma de jogar com inovações que sejam eficazes e eficientes, o que consequentemente afectará a capacidade criativa dos jogadores e da equipa.
Infelizmente, a palavra "organização" entendida no futebol de hoje prima pela rigidez e mecanicidade das acções e pela "robotização" dos jogadores. Ela reduz esta individualidade, impedindo a emergência do "eu" individual e, por tanto do "eu" colectivo criador. Qualquer noção de organização que procure diminuir ou eliminar o imprevisível e a criatividade, acentuando a mecanização das acções de jogo, limita a individualidade e a colectividade da equipa, levando esta inevitavelmente ao fracasso, que no futebol é a derrota.